Entre a legislação e a inovação: O jurídico como aliado estratégico na saúde
27/11/2025
Na era da inteligência artificial, da medicina digital e dos modelos de cuidado híbrido, inovar sem considerar o cenário jurídico é comprometer a sustentabilidade da própria inovação.
As transformações tecnológicas e organizacionais na saúde trouxeram ganhos de escala, agilidade e personalização, mas também impuseram novos riscos legais, éticos e regulatórios que precisam ser compreendidos e gerenciados com inteligência.
Hoje, o setor de saúde lida com leis que ainda estão sendo escritas, decisões judiciais que mudam o rumo de práticas consolidadas e políticas públicas que influenciam diretamente a viabilidade de inovações; é nesse cenário que o jurídico se torna, cada vez mais, um aliado essencial para inovação segura e responsável em hospitais.
A lei também inova: o desafio de regular o que ainda está nascendo
Enquanto soluções digitais ganham espaço nas instituições de saúde como IA aplicada a diagnósticos, plataformas de telemedicina, algoritmos de triagem e robôs assistenciais, o ordenamento jurídico corre para acompanhar esse ritmo.
Do ponto de vista legal, a inovação em saúde é desafiadora porque cruza diferentes esferas: direito médico, civil, trabalhista, regulação sanitária, LGPD, propriedade intelectual e, mais recentemente, auditorias algorítmicas e governança de IA.
A LGPD foi só o começo; agora, projetos de lei sobre IA, decisões sobre responsabilidade digital e novas normas da ANVISA exigem que startups, hospitais e empresas do setor pensem em compliance desde o design até a aplicação da solução na prática clínica.
O jurídico, nesse contexto, torna-se coautor da inovação: alguém que entende o produto, previne riscos e ajuda a construir soluções que possam escalar sem gerar passivos legais.
ENTREVISTA | O jurídico como aliado da inovação em saúde
Para entender como o jurídico pode apoiar a inovação, conversamos com a doutora Tatiana Freitas, Coordenadora Jurídica do Einstein Hospital Israelita. Confira abaixo:
1 – Como a frente jurídica de contratos enxerga o seu papel nos projetos de inovação? Como vocês equilibram agilidade com segurança jurídica?
A área jurídica contratual precisa ser criativa para acompanhar o ritmo dos projetos de inovação, mas, ao mesmo tempo, cautelosa, priorizando os princípios legais uma vez de que muitas vezes não há legislações específicas sobre temas que envolvem os projetos inovativos. Nosso papel é compreender a essência de cada projeto, traduzir isso em termos contratuais e avaliar suas aplicabilidades jurídicas.
Nesse processo, analisamos quais riscos podem surgir ao longo do projeto e de que forma eles podem impactar a instituição, terceiros e, principalmente, os pacientes. O contrato, portanto, deve ser visto como um aliado estratégico na construção do projeto, já que pode mitigar riscos significativos no futuro. Por isso, nossa atuação tem caráter generalista: utilizamos conceitos jurídicos para apoiar iniciativas de inovação, sempre atentos também aos aspectos éticos e legais envolvidos.
Conciliar agilidade e segurança jurídica é um dos maiores desafios. Muitas vezes, é necessário estudar com mais profundidade os impactos legislativos e regulatórios de uma iniciativa. Para isso, frequentemente recorremos a equipes multidisciplinares jurídica dentro do hospital. Avaliamos, por exemplo, questões tributárias, trabalhistas, éticas, privacidade, entre outros. Na maioria dos casos, os projetos são inéditos, o que exige, inclusive, acionar especialistas externos para garantir análises mais detalhadas.
Esse processo nos obriga a equilibrar a velocidade que a inovação exige com uma avaliação jurídica completa, de 360 graus. Nosso olhar precisa ser corporativo; voltado para o projeto e para o negócio, sempre com o objetivo de identificar riscos, propor medidas de mitigação e assegurar que os impactos — internos e externos — sejam considerados de forma responsável.
2 – Quais são os principais desafios que você já observou em contratos envolvendo inovação, especialmente com startups ou tecnologias em fase de validação?
Um dos maiores desafios é compreender o projeto. Muitas vezes, como advogados, não basta apenas avaliar os aspectos jurídicos — precisamos ir além e entender o conceito, o funcionamento e o impacto daquela iniciativa. Esse olhar mais amplo é fundamental, porque projetos de inovação geralmente têm repercussões que vão além da instituição, afetando também a sociedade.
Na fase de validação, essa dificuldade se intensifica, já que startups e novas tecnologias muitas vezes ainda não têm todas as respostas. Por isso, reuniões detalhadas com as equipes envolvidas são essenciais para compreender o contexto, levantar cenários futuros e mitigar riscos de forma adequada nos contratos.
Entre os pontos que mais exigem atenção estão: o uso e a proteção de dados (confidenciais e pessoais), questões de propriedade intelectual e a definição clara de responsabilidades. É necessário ter um olhar abrangente, capaz de equilibrar a criatividade e a novidade das soluções com a segurança jurídica.
Nossa instituição é muito criativa, e isso se reflete nos contratos. Recebemos constantemente propostas ligadas a produtos, tecnologias e serviços novos, seja do departamento de inovação ou de áreas comerciais. Isso torna o trabalho dinâmico e desafiador, mas reforça a necessidade de sair da “caixinha” e atuar de forma mais estratégica na área contratual.
3 – Qual é o fluxo ideal de interação entre o jurídico e as áreas de inovação? Como ele ocorre no Einstein?
O ideal é que a área jurídica esteja próxima da inovação, acompanhando o início e amadurecimento dos projetos. Essa proximidade garante a agilidade necessária e evita que o jurídico seja acionado apenas no fim, quando o projeto já está muito avançado e as respostas precisam ser imediatas.
O momento mais adequado para envolver o jurídico não é exatamente no início da concepção, mas quando o projeto atinge um estágio de maturidade suficiente para que se saiba que haverá um contrato ou parceria. Mesmo que ainda haja negociações em andamento, esse é o ponto certo para acionar o jurídico, pois já existe clareza sobre a natureza do projeto e os riscos de envolvimento. Assim, conseguimos analisar as possíveis consequências antes da fase de operação ou desenvolvimento.
No Einstein, mantemos um bom relacionamento com a diretoria de inovação, que nos aciona frequentemente para apoiar os projetos. Um dos pontos trabalhados é o alinhamento das fases dos projetos com o envolvimento antecipado do jurídico, o que favorece tanto a segurança quanto a agilidade desses.
4- Existe alguma boa prática que você recomenda para startups acelerarem a tramitação contratual de projetos inovadores com potenciais clientes?
Sim. O que observo é que muitas startups têm grande potencial, mas ainda não estão estruturadas para lidar de forma ágil com a tramitação contratual. Uma boa prática seria preparar, desde o início, modelos de contratos e critérios pré-definidos que permitam avançar mais rapidamente com potenciais clientes. Essa estrutura mínima evita que cada negociação comece do zero e ajuda a startup a não aceitar qualquer condição imposta pelo cliente.
Ter minutas simples, usuais e propostas padronizadas pode fazer diferença, assim como estabelecer fluxos internos claros para aprovação de contratos. Embora muitas vezes esse não seja um tema prioritário no estágio inicial, ele tem grande impacto no futuro. A ansiedade por conquistar clientes pode levar a decisões precipitadas, então, contratos bem-preparados são essenciais para dar sustentação ao crescimento da startup.
É importante lembrar que o contrato não é apenas uma burocracia. Pelo contrário: é um instrumento que define as “regras do jogo” desde o início e garante que, ao final do projeto, as partes recebam aquilo que foi acordado. Definir critérios e responsabilidades de forma clara logo no começo proporciona a segurança e potência à execução dos projetos inovadores.
5 – Você pode compartilhar um exemplo de projeto de inovação que representou um bom caso de colaboração entre a área técnica e o jurídico?
Temos atuado de forma cada vez mais próxima da área de inovação, principalmente no desenvolvimento de modelos de contrato que garantam maior agilidade para os projetos. Essa aproximação é importante para que, quando o projeto chega ao jurídico, já há clareza sobre o fluxo e as necessidades, permitindo que a análise seja mais objetiva. Sempre que há algum ponto fora do padrão, buscamos ser acionados de forma antecipada, para evitar entraves posteriores.
Nesse sentido, desenvolvemos modelos específicos de contratos para provas de conceito (POCs), prestação de serviços de validação e colaboração científica. Também estruturamos cláusulas voltadas a desenvolvimento e codesenvolvimento, com maior flexibilidade em propriedade intelectual — que normalmente é um dos pontos mais delicados das negociações.
Um exemplo marcante foi o Programa de Aceleração de startups para o SUS. Assim que surgiu a ideia, fomos acionados pela área de inovação, representada pela Ana Pinca, Coordenadora de Inovação da Eretz.bio. Desde o início, participamos das discussões, contribuímos com sugestões e apontamos riscos jurídicos. Após nossas primeiras reuniões, a equipe refinou a proposta e retornou com um projeto mais maduro, o que permitiu avançar com segurança. Essa colaboração foi essencial para que todas as áreas envolvidas – inclusive a diretoria – compreendessem os riscos e as medidas jurídicas necessárias ao longo do desenvolvimento de um projeto totalmente novo.
Esse caso ilustra como a proximidade entre jurídico e inovação potencializa os resultados: ganhamos agilidade, clareza e segurança, sem abrir mão da criatividade que projetos inovadores exigem.
